Este texto já está há muito para ser escrito, pelo menos já foi pensado, provavelmente idealizado e só nunca passou a texto, efectivo como é óbvio, por falta de tempo e inspiração. Por falar de inspiração e antes que o mesmo gere confusão, assumo perante o tribunal confessional da escrita, que nasce em parte como consequência da leitura atenta do “Elogio do Amor”, publicado no Expresso, pelo Miguel Esteves Cardoso. Do pouco que conheço da técnica de escrita, sei que ao começar assim este “manifesto”, o faço mais desinteressante. Então, óptimo. Parto agora do princípio que só o irá ler quem estiver efectivamente interessado nesta glosa.
Durante os últimos tempos, tenho vindo, por força da escrita e ainda mais da vida, a pensar sobre o que é o amor. Até agora nada de novo. Quem nasce português e é educado na cultura lusitana, vem formatado, como se de um computador se tratasse, para ser uma criatura eminentemente romântica. Pelo menos assim era. Basta fazermos um périplo pela literatura, com um especial enfoque para a poesia, portuguesa de sempre – o escritor português é aquele que ama da forma mais bonita, correndo o risco do pleonasmo: mais romântica. Haverá amor mais belo do que o provocado pela tristeza, pela dor, pela perda e pelo amor impossível?
O que seria de um Camilo Castelo Branco se não houvesse “amor de perdição”, o que seria de Florbela Espanca sem a loucura do desejo e dos afectos, o que seriam das Cantigas de Amigo? Faria sentido um Antero de Quental sem a pólvora do suicídio? A quem gritaria Eugénio de Andrade que “é urgente o amor, é urgente um barco no mar”? Tudo no amor, pelo menos literário, deixaria de fazer sentido sem a doce tragédia e tristeza do romance. O pior é que o amor deixou de ser literário. Passou a ser real, momentâneo, descartável, oportunista e fútil, terrivelmente fútil, ignóbil, medíocre e calculista. E porquê? Por causa da crise.
O país está em crise, leiam os analistas, vejam os jornais, vasculhem os blogues e os folhetins de esquerda distribuídos às portas das fábricas. Percorram as ruas e vejam como as pessoas estão tristes, as esplanadas vazias, as árvores parecem despidas e não. Não me digam que é por ser Outono. Tudo isto acontece por causa da crise. Acontece que quem manda na crise é o governo e quem manda no governo são os políticos, que por sua vez são mandados pelos gestores, pelos capitalistas, pelos sindicalistas, pelos economistas, pelos jornalistas, pelos ginecologistas e por muitos outros “istas”, que provocaram deliberadamente esta crise.
Começo a ficar irritado. Cheguei hoje de Barcelona e lá também se fala da crise. Dizem até que todos os governos mundiais estão a nacionalizar os bancos. E daí? Que eu saiba todos os bancos da Av. da Liberdade, do Rossio, da Av. da Igreja e do Jardim da Parada são do estado. Alguém se preocupou com isso até agora? Acho que a crise, a ser mundial, tem que ter um culpado. Esperem, acho que agora estamos a chegar a um ponto óptimo de raciocínio. Conhecem alguma coisa tão universal como a crise? Vá pensem, não custa nada. Acendam um cigarro e descalcem os sapatos, é fácil caramba! Não há nada mais universal do que o amor.
A falta de amor trouxe a crise ao mundo. Por favor não me julguem ingénuo ao ponto de acreditar que existe algum elemento mais influenciador de uma crise do que o amor. Podem-me dizer que é a guerra, então e o que é que provoca a guerra? Talvez a falta de amor. Então e o terrorismo? Talvez a falta de amor. Mas esperem, e a exploração do homem pelo homem? Talvez a falta de amor. E a corrupção nos mercados mundiais? Talvez a falta de amor. E o tráfico de mulheres, de drogas e de armamento? Talvez a falta de amor. E o capitalismo desenfreado que só vê o lucro pelo lucro? Talvez a falta de amor. Querem resolver mesmo a crise? Então resolvam primeiro o problema da falta de amor.
Então e o que é que há a fazer? Muita coisa meus amigos, muita coisa. Assassinem os ministros, os banqueiros, os gestores e os jornalistas. Todos, um por um. Agora contratem poetas, escritores, pintores e músicos para governarem o mundo. Proíbam as leis, os juízes e os advogados, incendeiem as gravatas no Rossio e fechem tudo o que vá da Fontes Pereira de Melo até à Avenida da Liberdade. Decretem greve nas fábricas e distribuam chocolates e flores pelas ruas. Vistam os polícias de branco, fechem os aeroportos, as fronteiras e ponham fim à televisão. Mais importante do que isto e citando o MEC, decretem guerra aos “romanticidas”. Quero lá saber do Bin Laden, do Saddam, da ETA e das FLAMA. Esses “romanticidas” sim são terroristas. Ponham-nos a todos no Campo Pequeno, ou cerquem-nos no quartel do Carmo e se quiserem até os podem atirar ao Douro. Mas acabem com essa raça. Agora estou a ser racista é? Muito bem, admito: sou um puro xenófobo anti-romanticidas.
Sejamos realistas, nada disto é possível. Até a escrita está interdita a estes pensamentos anarquistas, que só pecam por serem verdade. Façamos pelo menos um esforço, do género Primavera de Praga do amor, Revolução dos Cravos da paixão, Revolução de Veludo do romance e vamos da República Checa a Portugal, restaurar o amor no mundo. Um género de transição pacífica.
Vamos começar por uma Lei simples, melhor, um texto constitucional, que condene todos os romanticidas. Considera-se pois decretado:
Art. 297º da C.R.P.
1º Está proibido o amor, namoro, noivado, união de facto ou casamento, por parte daqueles que não reconheçam a sua pureza, a sua loucura e a sua eloquência.
2º Estão proibidas as relações sem rosas, chocolates, estaladas, berros, discussões e lágrimas, muitas lágrimas.
3º Está proibido o amor sem poesia, mesmo que má, de rima fácil e trato imberbe. Da mesma forma, estão obrigadas as cartas de amor, os versos roubados aos autores do costume, as citações de outrora e sempre, os bilhetinhos por baixo das carteiras, os piscares de olhos por entre a multidão, as dores de barriga no primeiro beijo e as bochechas rosadas ao primeiro piropo.
4º Está proibido o amor do “vamos tomar um café”, pelo que se institui o amor do beijo à chuva, do carro mal estacionado por entre o mato, das viagens pelo mundo, pela cidade e pela vida. Decreta-se assim a instituição do amor louco, em que se diz ao mundo que se pode morrer amanhã por falta dele.
5º Está proibido o mais condenável dos amores: o amor segundo plano. Desta forma que se prendam perpetuamente aqueles que pretiram o amor em função do trabalho, da faculdade, da família, do dinheiro, ou até mesmo de outro amor. A prioridade passa a ser o amor.
6º Torna-se desta forma obrigatório amar. Ao jovem e ao velho, ao homem e à mulher, ao rico e ao pobre, enfim: a todos. Que as ruas sejam invadidas pelo romance do antigamente, pela paixão louca e pelo amor. E fim, acabou a crise. De que importa ela em relação ao amor?
(reeditado)