28.8.09

Este texto já está há muito para ser escrito, pelo menos já foi pensado, provavelmente idealizado e só nunca passou a texto, efectivo como é óbvio, por falta de tempo e inspiração. Por falar de inspiração e antes que o mesmo gere confusão, assumo perante o tribunal confessional da escrita, que nasce em parte como consequência da leitura atenta do “Elogio do Amor”, publicado no Expresso, pelo Miguel Esteves Cardoso. Do pouco que conheço da técnica de escrita, sei que ao começar assim este “manifesto”, o faço mais desinteressante. Então, óptimo. Parto agora do princípio que só o irá ler quem estiver efectivamente interessado nesta glosa.


Durante os últimos tempos, tenho vindo, por força da escrita e ainda mais da vida, a pensar sobre o que é o amor. Até agora nada de novo. Quem nasce português e é educado na cultura lusitana, vem formatado, como se de um computador se tratasse, para ser uma criatura eminentemente romântica. Pelo menos assim era. Basta fazermos um périplo pela literatura, com um especial enfoque para a poesia, portuguesa de sempre – o escritor português é aquele que ama da forma mais bonita, correndo o risco do pleonasmo: mais romântica. Haverá amor mais belo do que o provocado pela tristeza, pela dor, pela perda e pelo amor impossível?


O que seria de um Camilo Castelo Branco se não houvesse “amor de perdição”, o que seria de Florbela Espanca sem a loucura do desejo e dos afectos, o que seriam das Cantigas de Amigo? Faria sentido um Antero de Quental sem a pólvora do suicídio? A quem gritaria Eugénio de Andrade que “é urgente o amor, é urgente um barco no mar”? Tudo no amor, pelo menos literário, deixaria de fazer sentido sem a doce tragédia e tristeza do romance. O pior é que o amor deixou de ser literário. Passou a ser real, momentâneo, descartável, oportunista e fútil, terrivelmente fútil, ignóbil, medíocre e calculista. E porquê? Por causa da crise.

 

O país está em crise, leiam os analistas, vejam os jornais, vasculhem os blogues e os folhetins de esquerda distribuídos às portas das fábricas. Percorram as ruas e vejam como as pessoas estão tristes, as esplanadas vazias, as árvores parecem despidas e não. Não me digam que é por ser Outono. Tudo isto acontece por causa da crise. Acontece que quem manda na crise é o governo e quem manda no governo são os políticos, que por sua vez são mandados pelos gestores, pelos capitalistas, pelos sindicalistas, pelos economistas, pelos jornalistas, pelos ginecologistas e por muitos outros “istas”, que provocaram deliberadamente esta crise.


Começo a ficar irritado. Cheguei hoje de Barcelona e lá também se fala da crise. Dizem até que todos os governos mundiais estão a nacionalizar os bancos. E daí? Que eu saiba todos os bancos da Av. da Liberdade, do Rossio, da Av. da Igreja e do Jardim da Parada são do estado. Alguém se preocupou com isso até agora? Acho que a crise, a ser mundial, tem que ter um culpado. Esperem, acho que agora estamos a chegar a um ponto óptimo de raciocínio. Conhecem alguma coisa tão universal como a crise? Vá pensem, não custa nada. Acendam um cigarro e descalcem os sapatos, é fácil caramba! Não há nada mais universal do que o amor.


A falta de amor trouxe a crise ao mundo. Por favor não me julguem ingénuo ao ponto de acreditar que existe algum elemento mais influenciador de uma crise do que o amor. Podem-me dizer que é a guerra, então e o que é que provoca a guerra? Talvez a falta de amor. Então e o terrorismo? Talvez a falta de amor. Mas esperem, e a exploração do homem pelo homem? Talvez a falta de amor. E a corrupção nos mercados mundiais? Talvez a falta de amor. E o tráfico de mulheres, de drogas e de armamento? Talvez a falta de amor. E o capitalismo desenfreado que só vê o lucro pelo lucro? Talvez a falta de amor. Querem resolver mesmo a crise? Então resolvam primeiro o problema da falta de amor.


Então e o que é que há a fazer? Muita coisa meus amigos, muita coisa. Assassinem os ministros, os banqueiros, os gestores e os jornalistas. Todos, um por um. Agora contratem poetas, escritores, pintores e músicos para governarem o mundo. Proíbam as leis, os juízes e os advogados, incendeiem as gravatas no Rossio e fechem tudo o que vá da Fontes Pereira de Melo até à Avenida da Liberdade. Decretem greve nas fábricas e distribuam chocolates e flores pelas ruas. Vistam os polícias de branco, fechem os aeroportos, as fronteiras e ponham fim à televisão. Mais importante do que isto e citando o MEC, decretem guerra aos “romanticidas”. Quero lá saber do Bin Laden, do Saddam, da ETA e das FLAMA. Esses “romanticidas” sim são terroristas. Ponham-nos a todos no Campo Pequeno, ou cerquem-nos  no quartel do Carmo e se quiserem até os podem atirar ao Douro. Mas acabem com essa raça. Agora estou a ser racista é? Muito bem, admito: sou um puro xenófobo anti-romanticidas.


Sejamos realistas, nada disto é possível. Até a escrita está interdita a estes pensamentos anarquistas, que só pecam por serem verdade. Façamos pelo menos um esforço, do género Primavera de Praga do amor, Revolução dos Cravos da paixão, Revolução de Veludo do romance e vamos da República Checa a Portugal, restaurar o amor no mundo. Um género de transição pacífica.


Vamos começar por uma Lei simples, melhor, um texto constitucional, que condene todos os romanticidas. Considera-se pois decretado:

 

Art. 297º da C.R.P.


1º Está proibido o amor, namoro, noivado, união de facto ou casamento, por parte daqueles que não reconheçam a sua pureza, a sua loucura e a sua eloquência.


2º Estão proibidas as relações sem rosas, chocolates, estaladas, berros, discussões e lágrimas, muitas lágrimas.


3º Está proibido o amor sem poesia, mesmo que má, de rima fácil e trato imberbe. Da mesma forma, estão obrigadas as cartas de amor, os versos roubados aos autores do costume, as citações de outrora e sempre, os bilhetinhos por baixo das carteiras, os piscares de olhos por entre a multidão, as dores de barriga no primeiro beijo e as bochechas rosadas ao primeiro piropo.


4º Está proibido o amor do “vamos tomar um café”, pelo que se institui o amor do beijo à chuva, do carro mal estacionado por entre o mato, das viagens pelo mundo, pela cidade e pela vida. Decreta-se assim a instituição do amor louco, em que se diz ao mundo que se pode morrer amanhã por falta dele.


5º Está proibido o mais condenável dos amores: o amor segundo plano. Desta forma que se prendam perpetuamente aqueles que pretiram o amor em função do trabalho, da faculdade, da família, do dinheiro, ou até mesmo de outro amor. A prioridade passa a ser o amor.


6º Torna-se desta forma obrigatório amar. Ao jovem e ao velho, ao homem e à mulher, ao rico e ao pobre, enfim: a todos. Que as ruas sejam invadidas pelo romance do antigamente, pela paixão louca e pelo amor. E fim, acabou a crise. De que importa ela em relação ao amor?  

 

(reeditado)

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link do postPor João Gomes de Almeida, às 11:38  comentar

Ana Anes

Ana Anes nasceu em Lisboa a 2 de Abril de 1973, com o cordão umbilical bem preso no pescoço. Pode-se dizer que é uma sobrevivente (alegre) e, como tal, decidiu festejar a vida com um carácter irreverente, livre de constrangimentos e da opinião alheia, com uma faceta “bombista-literária” em que não se levando a sério - porque a vida já é demasiado pesada por si mesma...
Tem dois livros publicados, e já escreveu em vários órgãos de imprensa, como O Independente, Destak, DNA, Maxmen, Correio da Manhã e Playboy. Os seus blogues já deram muito que falar.
Ana Santiago

Primeiro queria ser médica de autópsias, depois teve a mania de ser jornalista e apaixonou-se pela rádio, acabou por dedicar-se ao serviço público e vive uma relação passional com Lisboa, como sede no poder local, onde editou a Agenda Cultural.
Licenciada em Comunicação, resignou-se ao facto de pouco mais saber fazer na vida do que comunicar, de manhã à noite, com toda a gente e, se mais ninguém houver por perto, com ela mesma. Acredita que é com o coração.
Cátia Simão

Foi em véspera de uma Sexta-Feira 13 de Setembro que sua mãe conheceu o rosto enrugado e percebeu que não era o David (sobre o qual) tanto conversara durante 9 meses. Daí para a frente foi muitos nomes a até se assentar como Cátia. Cresceu pensando que iria ser modista, mas não tinha muito jeito para fazer costuras e braguilhas. Virou-se para a arqueologia e seguiu outro caminho, a música, os filmes e a rádio. Seguiu-se dos seus amores de garota. Ainda hoje procura as agulhas do seu giradiscos portátil na bainha de um vestido rosa da moda. É muito feliz e gosta de sorrir.
Cláudia Köver

Tem os ensinamentos anglo-saxónicos cravados nas sardas e o amor às artes nas pontas dos dedos. O gosto pela manta das Relações Internacionais, adquirido pelos retalhos da herança familiar, consome-se nas almofadas do mestrado. Seguiu um coelho branco e calçou os saltos de jornalista EM que de momento lhe assentam os pés. Deixou pequenas pegadas nas páginas da “Pública”, da revista “Nós” do Jornal i, do Jornal Briefing e da televisão Arte. Incapaz de se manter fiel ao amor por um só par de sapatos, fez cursos em instituições europeias e teve aulas de representação em palco poeirento. Infelizmente, não teve dom para fazer dinheiro como viajante, mas soma este aos restantes vícios: desde a última tarde de 86 que não se inibe de sorrir e sonhar.
Inês Leão

Registada na bela freguesia de Mem Martins, Inês teve uma infância feliz, até ao dia que teve de abandonar o ballet por ter as pernas tortas (erro que nunca foi corrigido pelas botas ortopédicas ora azuis ora castanhas, que usou até tarde). Sempre gostou muito de desenhar, tendo como maiores influências os filmes clássicos da Disney, a Barbie e o seu pai. Quando teve de escolher a sua área optou por artes, por não ter matemática, não fazendo ideia que teria de gramar com geometria descritiva. É recém-chegada no design e o seu sonho é ser uma designer de sucesso, trabalhando a partir do seu iate privado na marina da Costa Nova, na Ria de Aveiro.
Nuno Miguel Guedes

Nuno Miguel Guedes nasceu em Lisboa em 1964. Jornalista, esteve no inicio de O Independente, de onde saiu em 1990 para a revista Kapa, de que foi co-fundador e co-afundador. Escreve para várias publicações e é colaborador pemanente da revista Visão (cultura) Letrista sempre que o deixam, guionista de televisão, bloguista, DJ ocasional, anglófilo, fanático da Académica e de livros. Nos tempos livres pratica o dry martini.
Pedro Rainho

Nasceu no iníco da década de 60, na vila de Sintra. Filho de família aristocrata, cedo forçou-se a desiludi-la. Aos 14 anos já estava ilegalmente no MRPP, onde foi companheiro de luta académica de Durão Barroso, na Faculdade de Direito. Mal acabou o curso viu nascer Abril e ingressou no jornalismo. Tornou-se barbudo e descobriu o fado, a monarquia e os touros. Por esses quatro motivos entrou com o Nuno Miguel Guedes no PPM e dedicou-se ao jornalismo como paquete de Paulo Portas e Miguel Esteves Cardoso n'O Independente. Escreveu três ensaios sobre literatura russa medieval, traduzidos em mandarím e tchecheno. Deu aulas na Independente e consumiu marijuana com o comandante Zapata, durante uma fotoreportagem. Tudo isto é mentira - mas bem que podia ser verdade, não tivesse ele nascido na década de oitenta e ser um jovem jornalista precário. É o que dá ser novo.
Tomás Vasques

Advogado de profissão, não se deixou enclausurar em códigos e barras. Arrumado na prateleira da esquerda pela natureza das coisas, desenvolveu na juventude – ainda as mil águas de Abril não tinham chegado – gostos exóticos, onde se incluíam chineses, albaneses e charros alimados. Navegou por vários territórios: da pintura à América Latina, da escrita à actividade política. Gosta de rir, de cozinhar, de Roberto Bolaño, de amigos, cerveja e peixe fresco. Irrita-se com a intolerância e o autoritarismo. É agnóstico. Apesar da idade, ainda não perdeu o medo do escuro, do sobrenatural e das ditaduras.