Embrulhadas em tinta escurecida pela mistura dos tons pesados, as suas mãos agarraram firmemente o pincel quebradiço apontando-o depois de forma trémula ao quadro que abandonara horas antes. Tinha-se sentado à distância de um palmo num banco tosco de perna longa para observar com minúcia os traços que deveriam deixar espreitar o rosto que esbanjava uma gargalhada contagiante. Foi inclinando a cabeça para cima, para baixo, para a esquerda e para a direita para conhecer todos os cantos da obra que se eternizava no seu escritório gelado pela janela entre aberta e esquecida pelo desejo insaciável de pintar.
O sol, que olhava curiosamente este recanto, já se tinha passeado por vários pontos da sala durante esta longa e curiosa observação. Já o prato abandonado ao jantar do dia anterior, uma argamassa de rissóis e arroz, cujos restos ainda boiavam nas bordas, estava banhado em água no lava-loiça e o telefone, afónico pelo toque ininterruptamente negligenciado, tinha, na mente absorvida, se fundido com a música de fundo.
Traçou um novo rosto, que se sentava ao lado do primeiro e delineou a luz do pelo de um animal abandonado no canto do quadro. Depois, afundou a cabeça nas mãos preenchidas de tinta, foi à cozinha, encheu um novo prato, comeu a mesma ementa que comera nas últimas noites e que preparara cuidadosamente uma semana antes, e voltou a sentar-se no banco frágil.